IRMÃ CONCEIÇÃO DE OLIVEIRA, A PROFESSORA (1939-2025)
- 26/01/2025
Por: Professor Cleidson de Jesus Rocha
O processo de escolarização de crianças durante os anos de chumbo da ditadura militar, era orientado por um projeto vertical que instituía currículo, material didático, procedimentos de ensino e muitas, muitas normas de comportamento na rotina escolar. No Colégio São Francisco, em Mâncio Lima, onde eu estudei desde a primeira série - e de onde fui expulso no primeiro ano de escola (por não ter entendido a ordem de marchar na fila que ensaiava o desfile do 7 de setembro) e para onde retornei pela mão de minha tia Clê, professora que leciona no terceiro ano primário -, o ensino era uma mistura de protocolo cívico-religioso, com o requinte vitoriano que se espraiava do uniforme impecável, às exigências de domínio exímio do léxico e da aplicação da gramática, em todas as situações e circunstâncias.
O Colégio, nos anos de 1970, era liderado pelo Padre Edson de Oliveira Dantas, um amante da palavra e da música, dos militares e de ocasiões solenes, da gramática e de todos os rococós que se escondem atras de um diploma universitário. Como vigário da paróquia de Mâncio Lima, mas principalmente como diretor da escola, detinha tanto poder que era ele quem escolhia as professoras, o corpo técnico, os servidores de apoio, aceitava ou rejeitava matrículas de alunos. Ele tinha como marca pessoal, o sofisticado domínio da oratória, talhada na Universidade de Coimbra e aprimorada em sermões sublimes que fazia do púlpito da Igreja de São Francisco, que ficava no quintal de sua casa.
No “Colégio”, de quando em quando chegava material escolar de Brasília. Nós, crianças, ficávamos sabendo que havia novidade no ar, porque parava uma caminhonete tipo Rural na frente da escola e, quando isso acontecia, alguém passava avisando que o « inspetor » ia passar de sala em sala e que nós devíamos nos levantar das cadeiras e cumprimentar com distinção aquele nobre senhor, que representava o governador do Estado. A gente ficava ansioso, treinava um « bom dia senhor » e ficava com as mãos geladas esperando a equipe chegar e anunciar as benesses que o governo nos concedia por pura generosidade e amor cristão.
Em alguns dias do ano chegava também um preparado para sopa, que diziam ser bugô, um troço que eu nunca distingui na vida, embora hoje eu ache tratar-se de grãos de soja ou arroz. Bugô tinha uma cor marrom e vinha misturado com temperos comuns desidratados. À época diziam que estes grãos eram importados dos Estados Unidos, e que chegavam ao Brasil por meio de uma tal Aliança Para o Progresso, celebrada entre o governo dos dois países, para alimentar criança pobre.
Numa das vezes, chegou um carregamento de cadernos, que traziam, na primeira contra-capa, o hino acreano, e na última capa, os hinos Nacional e da Independência. Foi descerem os cadernos, subiu uma nova regra: uma cantoria diária dos hinos, com o padre a reger cada nota e a fiscalizar cada frase. Um erro que saísse, mesmo em sussurro, motivava infinitas repetições e solavancos nos braços, com a frase mais conhecida que saia da boca do diretor, quando ficava contrariado com seus alunos desatentos: « burro, burro, burro ».
Nesse mesmo estoque, chegaram também uns disquinhos compactos com umas canções patrióticas, que passamos a ouvir toda manhã, na fila que se formava antes de adentrarmos à sala de aula. Essas filas, aliás, merecem um destaque: elas separavam meninos de meninas, eram organizadas dos maiores para os menores e, uma vez « formados », não cabia nenhum tipo de gaiatice, gestos banais, risos ou qualquer tipo de brincadeira. Fila era coisa séria, ensinavam.
Voltando às musiquinhas patrióticas, hoje, mesmo já tendo visto passarem muitos verões, sempre me vejo a cantarolar uns versos que dizem: « este é um país que vai pra frente, ô, ô, ô! De uma gente alegre e tão contente, ô, ô, ô, ô! Esse é um país que vai pra frente, de gente humilde e de grande valor (…)”! Sim! Esses versos saiam tão claros, puxados do mais profundo fulgor patriótico, que dissipavam qualquer dúvida sobre o futuro glorioso do Brasil e de nosso lugar no mais alto píncaro da glória nacional.
Essa organização escolar e também a prática pedagógica que acontecia na sala de aula, sempre me pareceu aleatória, monocrática, ocasional, quase acidental. A gente não via nenhuma movimentação de reunião de professores, de sessões de trabalho de planejamento, de produção de material didático, de reuniões pedagógicas, nada! O ensino era o que mandavam que fosse. Era a ditadora militar fazendo das suas, sustentada pela límpida ignorância, de nossa parte, sobre o que fosse um governo de exceção.
Mas o início do ano letivo de 1976, quando eu tinha 12 anos e estudava a quinta série, encontramos o Colégio com outros ares. Eu percebi quando tocou o sino, um lindíssimo penduricalho que ficava no andar de cima e que era tocado por uma única pessoa, a dona Joana. Ela tocou e desceu para ajudar a organizar a entrada dos alunos. Ainda procurando meu lugar no rabo da fila, já que era baixinho, vi se aproximarem umas três ou quatro freiras, que atravessavam o pátio do colégio em nossa direção, com um uniforme tão branco, que as ondas das passadas pareciam nuvens a se moverem nas brisas de maio. Sobre a cabeça, um manto preto, solene, prendido com uma espécie de papelão revestido de tecido, que formava um arco acima da testa e emoldurava as feições plácidas daquelas almas. À nossa frente estavam as irmãs dominicanas, que tinham sido designadas para fazer a gestão da escola.
Nos últimos anos, nós, “meninos do Colégio”, tínhamos visto se erguer um prédio enorme na parte de trás de nossa escola. Foi uma movimentação demorada, mas discreta, com homens empurrando carrinhos de mão com tijolos, outros erguendo estruturas de madeira e nuvens de cimento voando em nossos olhos. Isso despertava uma enorme curiosidade nas crianças, mas não tínhamos autorização para cruzar a cerca. Eu queria muito conhecer como era uma casa de alvenaria, mas não podia.
Daquela manhã de março de 1976, guardo muitas imagens. Os banheiros estavam impecáveis de limpos, havia plantas em vasos enormes distribuídos nos corredores, e o salão do recreio estava enfeitado com jarros de flores frescas, colhidas, provavelmente, no sublime jardim que cercava a casa das freiras, e de onde brotavam rosas tão vermelhas, e espécies tão diferentes, que eu ficava olhando entre as brechas da cerca de sapucaia, admirado com os cuidados e as técnicas da jardinagem dominicana. O movimento das freiras andando em nossa direção, parecia uma coreografia ensaiada: era um passo e uma revoada do manto; era mais um, e o hábito branco se retorcia como se quisesse abraçar as pernas longas das freiras. Esse foi o primeiro ato da cena: quando chegaram até nós, uma delas pegou a palavra. Era a Irmã Conceição, segundo se apresentou. Era amazonense, mas tinha cruzado o Brasil, e aquela época, parece que vinha de Guarulhos-SP, para ser a nova diretora do Colégio. Ela nos cumprimentou com uma voz firme e um olhar seguro, que nos fitava com uma segurança que eu jamais tinha visto no olhar de uma mulher, pois ela trazia algumas certezas na íris. E nos acolheu com doçura e determinação e uma curiosidade engajada de conhecer seu público, como aluno e não como rebanho.
A gestão da irmã Conceição como diretora do Colégio São Francisco, se estenderia por muitos anos. E era preciso que fosse assim, pois o trabalho pedagógico que instituiu, serviu, não só para sua instituição, mas também para as demais escolas da cidade, que estavam aprendendo que a vida escolar é feita por um conjunto de ações coordenadas, pensadas, (re)fletidas, para terem sentido pedagógico. Ela trouxe a dinâmica de funcionamento institucional e os ritos próprios desse processo: as normas passaram a ter sentido, a vida ordinária da escola ganhou uma dinâmica regular. Os professores passaram a demonstrar mais confiança no que faziam, os serviços operacionais foram se aprimorando, e impôs-se uma impessoalidade amorosa, que estimulava os servidores, as famílias e, principalmente, os alunos.
O senso de responsabilidade com a vida escolar dos alunos, imprimiu inclusive som aos corredores da escola. De repente as máquinas de datilografar entraram em ebulição, com secretárias escrevendo, botando folhas brancas, que saiam preenchidas com a documentos, históricos e boletins escolares foram ganhando vida; começaram a se organizar reuniões pedagógicas, a sala dos professores passou a ser um território de encontros alegres, de trocas de informações e de muito, muito afeto. De vez em quando entravam umas torradas frescas, broas de milho e bolos, que agradavam o paladar dos professores e, embora na simplicidade, denotava a carga de carinho nutrido na vivência coletiva.
Irmã Conceição ensinava português na quinta série. Foi ali que ouvi a leitura oral de um texto escrito por mim, pela primeira vez. Ele valorizava e confiava nos seus alunos, elogiava quando mereciam, ralhava quando precisava, e sabia cobrar com justiça. Quando eu saí do Colégio para prosseguir estudos em outros centros, ela mandava cartas, para saber dos progressos escolares. Se dispunha a ir aos correios, entregar os envelopes escritos com uma letra tão perfeita, que, quando eu recebia as cartas, a primeira coisa que fazia era ficar olhando aquele bordado de letras, as margens cuidadosamente respeitadas, a escolha cuidadosa do papel, a forma dos cumprimentos iniciais, e a saudação final, sempre tão nítida: ‘continue se esforçando, sem perder o bom humor”.
Irmã Conceição ajudou muito a melhorar o mundo, melhorando cada um que lhe chegou às mãos. Nossos temperamentos e condições variadas, foram seu fermento de trabalho. Quando ela deixou Mâncio Lima para cumprir sua missão missionária, a cidade tinha aprendido o que é e como é que se faz uma escola funcionar. Ela partiu no dia 18 de janeiro deste ano, com 86 anos de idade, e deixou muita saudade e maravilhosas lembranças. Eu, de minha parte, vou seguir me esforçando, tentando não perder o bom humor, como ela pedia, mesmo frente à dureza da vida. Prometi a ela, no velório, na Capela do Instituto Santa Terezinha, no dia da despedida.